Qualquer estudo elementar sobre Teoria Geral do Estado ou Ciência Política apontará a importância quase transcendental do “bem comum”. Quer dizer: acima dos mesquinhos interesses individuais pairam soberanos, o interesse coletivo, a vontade do povo (aquele cuja voz é também a do Todo-Poderoso), e, ocorrendo confronto entre o bem individual e o bem coletivo, este último deverá, necessariamente, prevalecer, triunfal. O bem comum é, a um só tempo, a finalidade e a mais completa tradução do ideal democrático.
Assim, sendo gregária a natureza do mamífero humanóide, deve ele renunciar a certas pequenezas clamadas pelas profundezas de sua alma, de modo a possibilitar a convivência com seus pares. Portanto, nada mais justo do que, em nome do bem comum, certos prazeres (diminutos ou de dimensões continentais) devem ser abolidos, caso prejudiciais à coletividade. Enfim, se conflitantes com o bem comum.
Pois bem. Eis que um belo dia, o representante da vontade do povo (e, logo, responsável pela consecução e manutenção do bem comum) descobre que muitos desses prazerezinhos desgastam, prejudicam, aniquilam o bem comum. Gorduras. Açúcares. Álcool. Cigarros. Sexo sujo (ou mesmo o sexo limpo, mas em local inadequado). Por conta do egoísmo desenfreado desses hedonistas compulsivos, que insistem em manter vícios hediondos, suas mortes e moléstias decorrentes de tais hábitos elevam os custos da saúde pública a níveis estratosféricos, as famílias se desagregam e a desordem ameaça imperar. O bem comum está ameaçado!
Nada mais justo e natural que o tal representante da vontade do povo limite, coíba, proíba. O açúcar branco. O ovo frito. O álcool (com exceção, claro, da versão em gel, indispensável para mãos completamente higienizadas e livre de outras moléstias, igualmente danosas ao bem comum). E, pilar dos pilares da destruição da saúde pública, o cigarro. Afinal, é amplamente sabido que fumantes, etilistas, obesos e outros aditos... morrem.
(E morrer causa custos ao bem comum.)
Os resultados foram imediatos. Os índices de mortalidade, pouco a pouco, despencam e geram um inédito e comemorado momento de superávit no orçamento destinado à saúde pública. Finalmente, o mundo se inundava de virtudes e saúde!
Aliás, muita saúde. A expectativa de vida se alongou em décadas. Na verdade, como esperado, cessaram as mortes, pois os prazeres letais como o cigarro, o álcool, o açúcar, a gordura (especialmente a demoníaca “trans”!) estavam banidos para todo sempre.
Toda uma população ingressava na “melhor idade”, esbanjando vigor, prontos para curtir suas aposentadorias com tenras ereções garantidas pela indústria farmacêutica e firmes tetas de borracha recheando a tez carimbada com a garantia “bronzeada artificialmente”.
E foi justamente nas aposentadorias que o problema começou. Com a sucumbência das previdências privadas à sua falta de lastro, todo o contingente de indivíduos salvos pela extinção dos vícios da sociedade migraram para o sistema público de Previdência Social. Que sempre fora projetada pelo e para o bem comum. Mas que nunca previu que tantos cidadãos imortalizados pela juventude eterna quisessem e pudessem dele usufruir.
O ineditismo do superávit do orçamento da saúde foi rapidamente substituído por um déficit previdenciário de proporções de país africano em colapso econômico. Mas o pior foi a onda de desemprego nos setores relacionados com a administração funerária: diariamente, avenidas passaram a ser tomadas por coveiros em passeata, carros fúnebres eram colocados à venda por preços menores que passagens de ônibus. Cemitérios alugavam seu espaço para raves da 4ª idade.
Diante daquela que foi batizada como “a crise dos imortais”, o representante do povo foi instado a se pronunciar. Em nome do bem comum. E foi em nome do bem comum que se lançou a campanha para mortes voluntárias, que ficou conhecida como PDVV (Programa de Desligamento Voluntário da Vida), em que se ofereciam atraentes benefícios fiscais e previdenciários aos familiares daqueles que aderissem ao programa governamental.
Mas a onda de saúde proporcionada pelo banimento dos vícios fez com que aqueles cidadãos tomassem gosto pela coisa. E a campanha pelas mortes voluntárias não deu conta de restaurar o bem comum, dada a baixa adesão. O que exigiu do representante do povo providências imediatas: dada a relevância e urgência da matéria (o bem comum), foi editada medida provisória determinando um limite etário para aqueles indivíduos. Os que ultrapassassem a idade considerada limite para o bem comum deveriam retirar-se voluntariamente para os CCDs (Centros Coletivos de Desligamento da Vida), sob pena de condução coercitiva.
Dos CCDs para a descriminalização da eutanásia foi um passo. E, incrivelmente, o fim da ameaça de prisão pela morte piedosa não foi incentivo suficiente, e o bem comum exigiu não a legalização, mas a obrigatoriedade da eutanásia. Tudo pelo bem comum.
Afinal, o bem não pode ser tão comum a todos. Não dá pra todo mundo...
Nada mais justo e natural que o tal representante da vontade do povo limite, coíba, proíba. O açúcar branco. O ovo frito. O álcool (com exceção, claro, da versão em gel, indispensável para mãos completamente higienizadas e livre de outras moléstias, igualmente danosas ao bem comum). E, pilar dos pilares da destruição da saúde pública, o cigarro. Afinal, é amplamente sabido que fumantes, etilistas, obesos e outros aditos... morrem.
(E morrer causa custos ao bem comum.)
Os resultados foram imediatos. Os índices de mortalidade, pouco a pouco, despencam e geram um inédito e comemorado momento de superávit no orçamento destinado à saúde pública. Finalmente, o mundo se inundava de virtudes e saúde!
Aliás, muita saúde. A expectativa de vida se alongou em décadas. Na verdade, como esperado, cessaram as mortes, pois os prazeres letais como o cigarro, o álcool, o açúcar, a gordura (especialmente a demoníaca “trans”!) estavam banidos para todo sempre.
Toda uma população ingressava na “melhor idade”, esbanjando vigor, prontos para curtir suas aposentadorias com tenras ereções garantidas pela indústria farmacêutica e firmes tetas de borracha recheando a tez carimbada com a garantia “bronzeada artificialmente”.
E foi justamente nas aposentadorias que o problema começou. Com a sucumbência das previdências privadas à sua falta de lastro, todo o contingente de indivíduos salvos pela extinção dos vícios da sociedade migraram para o sistema público de Previdência Social. Que sempre fora projetada pelo e para o bem comum. Mas que nunca previu que tantos cidadãos imortalizados pela juventude eterna quisessem e pudessem dele usufruir.
O ineditismo do superávit do orçamento da saúde foi rapidamente substituído por um déficit previdenciário de proporções de país africano em colapso econômico. Mas o pior foi a onda de desemprego nos setores relacionados com a administração funerária: diariamente, avenidas passaram a ser tomadas por coveiros em passeata, carros fúnebres eram colocados à venda por preços menores que passagens de ônibus. Cemitérios alugavam seu espaço para raves da 4ª idade.
Diante daquela que foi batizada como “a crise dos imortais”, o representante do povo foi instado a se pronunciar. Em nome do bem comum. E foi em nome do bem comum que se lançou a campanha para mortes voluntárias, que ficou conhecida como PDVV (Programa de Desligamento Voluntário da Vida), em que se ofereciam atraentes benefícios fiscais e previdenciários aos familiares daqueles que aderissem ao programa governamental.
Mas a onda de saúde proporcionada pelo banimento dos vícios fez com que aqueles cidadãos tomassem gosto pela coisa. E a campanha pelas mortes voluntárias não deu conta de restaurar o bem comum, dada a baixa adesão. O que exigiu do representante do povo providências imediatas: dada a relevância e urgência da matéria (o bem comum), foi editada medida provisória determinando um limite etário para aqueles indivíduos. Os que ultrapassassem a idade considerada limite para o bem comum deveriam retirar-se voluntariamente para os CCDs (Centros Coletivos de Desligamento da Vida), sob pena de condução coercitiva.
Dos CCDs para a descriminalização da eutanásia foi um passo. E, incrivelmente, o fim da ameaça de prisão pela morte piedosa não foi incentivo suficiente, e o bem comum exigiu não a legalização, mas a obrigatoriedade da eutanásia. Tudo pelo bem comum.
Afinal, o bem não pode ser tão comum a todos. Não dá pra todo mundo...
(texto de Tina Bee)